Introdução
O bagaço de cana-de-açúcar, antes considerado resíduo, passou a ser valorizado como insumo essencial para cogeração de energia elétrica e produção de vapor agregando valor às usinas e ao setor sucroenergético. Com a recente desvalorização da energia elétrica produzida em turbinas de condensação e a crescente demanda, especialmente impulsionada por produtores de etanol de milho, surgem variações significativas de preço. No entanto, a comercialização do bagaço se baseia em peso úmido, sem considerar parâmetros técnicos como poder calorífico, o que pode levar a negociações injustas.
Nas usinas Brasileiras, predominam processos de extração por moenda, embora o difusor represente parcela relevante do parque industrial. Essa diversidade levanta a questão de como cada processo de extração pode influenciar a composição e o poder calorífico do bagaço. É esperado que o bagaço sofra uma degradação quando armazenado de uma safra para outra, principalmente pela ação microbiológica e exposição a intempéries – chuva, radiação solar e ventos – que atuam sobre as pilhas. Embora esse tema seja relevante, ele será abordado em um estudo futuro. Em uma análise recente em um dos projetos elaborados pela A1, identificamos diferenças significativas entre o bagaço oriundo de moendas e aquele produzido por difusores. Assim, neste artigo vamos explorar como o processo de extração (moenda vs. difusor) influencia na composição e no poder calorífico do bagaço, com ênfase em seus impactos na produção de vapor.
Comparação da Impureza Mineral: Moenda vs. Difusor
Recentemente, em um projeto de eficiência energética, comparamos a produção de bagaço entre duas unidades: uma com moenda e outra com difusor. É conhecido a diferença na qualidade do caldo produzida nos dois processos de extração: o caldo extraído do processo de difusão tem uma qualidade superior ao caldo extraído de moenda. Isso porque o processo de difusão atua como filtro, resultando em caldo com menor teor de sólidos em suspensão. Segundo Rein (2007), caldo é extraído com teor de 0,12 g/100g para difusor e 0,67 g/100g para moenda. Para efeitos práticos vamos considerar que os sólidos em suspensão presentes no caldo são formados de 60% impureza mineral (terra) e 40% impureza vegetal (bagacilho).
Através de um balanço simplificado conseguimos encontrar a quantidade de impureza mineral que ficou no bagaço para os dois processos. A tabela a seguir mostra os principais parâmetros usados no balanço e o resultado deste balanço.
Tabela 1 – Parâmetros usados na determinação da impureza mineral no bagaço
Impureza mineral na cana-de-açúcar | 0,7%* |
Caldo produzido na moenda | 1,07 ** |
Caldo produzido no difusor | 1,20 ** |
Umidade do bagaço | 50%* |
Impureza estimada no bagaço produzido pela moenda | 3,1 % |
Impureza estimada no bagaço produzido pela moenda | 1,2 % |
* considerado para os dois processos: moenda e difusor
** kg de caldo /kg de cana-de-açúcar: diferença causada pela diferença na quantidade de água de embebição nos dois processos.
Metodologia para Cálculo do Poder Calorífico Inferior (PCI)
O PCI ou poder calorífico inferior é o parâmetro que representa a quantidade de energia liberada na combustão completa de combustíveis. Pode ser determinado por calorimetria ou estimado por fórmulas empíricas, baseada na composição elementar do combustível. Estudos empíricos mostram algumas variações dos parâmetros ajustados como a fórmula de Dulong fórmula de Milne, Demirbaş(2004). Essas diferenças dependem entre outros fatores, do tipo de combustível, cinzas, impurezas etc. A equação abaixo mostra uma boa aproximação para o bagaço de cana de açúcar.
onde:
- representam respectivamente as frações mássicas de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, enxofre, umidade, e material inerte no combustível.
A seguir, explicamos o significado físico de cada termo:
— Contribuição do Carbono
O carbono é o principal elemento responsável pela energia liberada na combustão de combustíveis fósseis e biomassa. Ao oxidar-se completamente, forma dióxido de carbono (CO₂), liberando calor. O coeficiente 34.106 kJ/kg representa a quantidade média de energia liberada por unidade de massa de carbono no combustível.
— Contribuição do Hidrogênio
O hidrogênio possui o maior poder calorífico por unidade de massa entre os elementos combustíveis. Quando oxida, forma vapor de água (H₂O), liberando grande quantidade de energia. Entretanto, parte desse calor é reduzida no cálculo do PCI, pois considera-se a água formada em fase de vapor, sem recuperar o calor de condensação. O coeficiente 90.962 kJ/kg já corresponde ao valor líquido após o desconto do efeito da vaporização da água gerada.
— Efeito do Oxigênio
O oxigênio presente no combustível não contribui para a liberação de energia; pelo contrário, ele já está parcialmente combinado com o carbono e o hidrogênio, reduzindo o potencial energético disponível. Assim, quanto maior o teor de oxigênio, menor será o PCI. O coeficiente negativo –8.449 kJ/kg representa essa redução energética.
— Contribuição do Enxofre
O nitrogênio, quando presente, oxida-se a NO, NO₂, NOx liberando energia. Seu efeito é praticamente neutro devido à baixa composição de nitrogênio quando comparado aos demais elementos. O coeficiente 5.941 kJ/kg indica a energia liberada por unidade de massa de nitrogênio orgânico presente.
— Contribuição do Enxofre
O enxofre, quando presente, oxida-se a dióxido de enxofre (SO₂), liberando energia. Sua contribuição é menor que a do carbono e do hidrogênio, mas ainda relevante em combustíveis fósseis como carvão mineral e óleo combustível. O coeficiente 9.373 kJ/kg indica a energia liberada por unidade de massa de enxofre.
— Perda por Umidade
A umidade (U) reduz diretamente o PCI, pois a água contida no combustível precisa ser evaporada durante a combustão, consumindo parte da energia liberada. O fator –2.512 kJ/kg corresponde ao calor latente médio de vaporização da água, descontando a energia útil disponível. Assim, quanto maior o teor de umidade, menor será o poder calorífico.
— Perda por impurezas minerais
Minerais e terra são em grande parte inertes do ponto de vista calorífico: eles diluem o conteúdo combustível por massa e, portanto, reduzem o PCI por kg de material recebido. Alguns minerais (ex.: carbonatos como CaCO₃) sofrem decomposição endergônica que consome calor (penalidade adicional). Além disso, alguns minerais também podem reter água ligada (água de cristalização) que exige energia para ser removida. Uma equação mais rigorosa que descreve o efeito dos minerais presentes no combustível teria o formato a seguir.
Nesta equação , é a energia estimada necessária para a decomposição térmica do CaCO₃. Este termo só aparece se houver carbonatos significativos na cinza. Wb é a fração mássica de água ligada / cristalina associada a minerais (se houver) e Lb é a energia necessária para liberar essa água ligada. Para usarmos esses parâmetros precisaríamos de uma caracterização da fração mineral da cinza produzida na caldeira. Assim, para efeitos práticos, vamos considerar apenas a influência na diluição do combustível. Ou seja, para simplificação nos cálculos assim, a influência da das impurezas minerais no combustível apenas reduz a composição elementar do combustível.
Resultados do PCI para Moenda e Difusor
Para aplicar a equação do PCI no bagaço, vamos considerar a composição elementar do bagaço apresentada na Tabela 2
Tabela 2 – Composição elementar do bagaço da cana-de-açúcar
Elemento | Fibra do bagaço (Base seca) | Bagaço do difusor | Bagaço da moenda |
C | 47,91% | 22,47% | 23,38% |
H | 5,91% | 2,77% | 2,89% |
N | 0,33% | 0,15% | 0,16% |
S | 0,04% | 0,02% | 0,02% |
O | 48,8% | 21,48% | 22,35% |
U | – | 50 % | 50 % |
M | – | 3,1 % | 1,2 % |
Aplicando a equação para calcular o PCI do bagaço encontramos os seguintes valores de PCI:
Essa metodologia apresentou um resultado muito parecido com o encontrado experimentalmente por Rein (2007), que determinou que o PCI do bagaço do difusor é de 7200 kJ/kg enquanto para moenda era de 7497 kJ/kg.
Conclusão
A diferença no PCI entre os bagaços de moenda e difusor se dá porque a maior parte da terra que entra com a cana termina no bagaço no processo de difusão. Esse artigo evidencia a importância de considerar a composição do bagaço na negociação comercial a depender principalmente da sua aplicação. A adoção de critérios técnicos, como o PCI, pode tornar o mercado mais justo e eficiente, especialmente diante da crescente demanda por biomassa energética.
Referências
Van Loo, S., & Koppejan, J. (2008). The Handbook of Biomass Combustion and Co-firing. Earthscan.
Demirbaş, A. (2004). Estimating the Calorific Values of Lignocellulosic Fuels. Energy Exploration & Exploitation, 22(5), 135–143.
Demirbaş, A. (1997). Calculation of higher heating values of biomass fuels. Fuel, 76(5), 431–434.
ASTM D5865-19. Standard Test Method for Gross Calorific Value of Coal and Coke.
Rein, P. (2007). Cane Sugar Engineering.